por Eduardo Carli de Moraes
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Retornar a 1961, através do tapete mágico e alado do cinema, para encontrar uma representação instigante daquele que um dia foi um completo desconhecido, um anônimo zanzando incógnito pelas esquinas do Greenwich Village, tratado como um caipira qualquer chegado dos cafundós do Minnesota, com seu violãozinho surrado e seus sonhos de glória, é um dos maiores baratos do filmaço dirigido por James Mangold – cineasta que já se aventurara por seara semelhante em sua biopic sobre Johnny Cash e June (Walk The Line, 2015) e também conduzira com maestria o drama-de-hospício Garota Interrompida (1999).
Banquete para olhos e ouvidos não apenas para Dylanmaníacos mas também para dummies, o filme concentra-se na descrição da ascensão meteórica deste Complete Unknown, nascido Robert Zimmermann, que aos 20 poucos põe o pé na estrada, abandonando uma terra natal e um ninho familiar que permanecem para o espectador na completa escuridão do mistério, e segue no rumo que o levará a Nova York, seguindo as pegadas de seu mestre Woody “Esta Máquina Mata Fascistas” Guthrie, então internado em Jersey com uma doença neurodegenerativa.
Hoje já consagrado como artista imenso na história da música cantada, o único letrista de canções que foi laureado com um Nobel de Literatura (ainda que não tenha comparecido à cerimônia), Bob Dylan ganha cada vez mais uma presença fílmica que se se alarga com obras que não são redundantes. Cada uma traz suas contribuições à nossa apreciação da arte dylanesca: depois do I’m Not There de Todd Haynes e do No Direction Home e do Rolling Thunder Revue de Martin Scorsese, temos agora esta poderosa dramatização dos primeiros anos do poeta folk-beatnik que ousou confrontar a caretice dos puritanos, enfiar a eletricidade em Newport, a despeito das garrafadas lançadas pelo público e dos gritos de “Judas” que lhe foram dirigidos.
O filme é menos uma biopic, em que presume-se que uma vida toda, do berço a tumba, vá ser sinteticamente descrita – e mais uma obra do tipo slice-of-life, focando em Dylan e arredores entre 1961 e 1966: trata-se de um “recorte da vida”, como escreveu Mário Bortolotto, “mais precisamente a gênese da lenda”. [1]
Em seu texto Alvorecer da Esfinge Dylan, Carlos Alberto Mattos pontua com razão que o contexto mais privilegiado pela produção é a “dessacralização do purismo folk com Dylan abraçando a guitarra elétrica em meados da década de 1960. Uma apresentação bombástica e histórica em Newport 1965 ganha reconstituição empolgante no último ato do filme.” [2]
A obra cinematográfica foi inspirada pelo livro Dylan Goes Electric – Newport, Seeger, Dylan, and the Night that Split the Sixties, de Elijah Wald, jornalista musical e músico de folk. O autor tem feito intervenções públicas para esclarecer que alguns episódios descritos na telona, sobretudo as várias visitas de Dylan a Guthrie no hospital, não aconteceram de fato e foram inseridas no filme para fins dramáticos.
Já “a noite que dividiu os sixties”, referida no título, refere-se certamente àquela sequência em que o filme chega a seu ápice de tensão e conflituosidade: a apresentação ruidosa, disruptiva, rebelada, de um Dylan eletrificado diante da platéia de Newport, vastamente composta por entusiastas de um folk tradicionalista.
A tarefa hercúlea de interpretá-lo coube a Timothée Chalamet – como escreve Ivan Finotti na Folha de S. Paulo,
“como Dylan, o ator de 29 anos foi indicado pela segunda vez ao Oscar de melhor ator. A primeira foi por Me Chame Pelo Seu Nome, de Luca Guadagnino, lançado em 2018. É o primeiro ator a receber duas indicações antes dos 30 anos desde James Dean. O que nem todo mundo sabe ao entrar no cinema é que Chalamet de fato canta e toca, com violão e gaita, todas as 40 músicas apresentadas. E não foram gravações que ele fez em estúdio para dublar no momento da filmagem. O ator de fato está cantando e tocando ao vivo enquanto é filmado, e o que os espectadores ouvem é essa interpretação ao vivo. A atriz Monica Barbaro, que vive a cantora Joan Baez, hoje com 84 anos, incentivadora e amante de Dylan, e Edward Norton, como o seu mentor Pete Seeger, fazem o mesmo em suas participações musicais. Ambos foram indicados ao Oscar nas categorias de ator e atriz coadjuvantes.” [3]
Diante dos mestres instituídos, Bobby meio que gangorreia entre a reverência, como fica claro em seu périplo peregrinatório para visitar o adoecido Guthrie, cantor supremo das mazelas do Dust Bowl, e a irreverência rebelde, como é óbvio em sua recusa do puritanismo de Alan Lomax e das parábolas sobre colheres-de-chá nas mãos das massas laboriosas “to level things out” enunciado pelo sempre-boa-praça Pete Seeger. O filme de Mangold sabe expressar bem este lado polêmico e rebelde de Dylan, em sua recusa do bom-mocismo e seu abraço a atitudes mais confrontatórias.
Um ponto fraco do filme é ocultar/ignorar os reverências que Bob tinha no campo literário – fica parecendo que apenas outros músicos – aí incluídos Hank Williams, Elvis Presley, Little Richard, Blind Willie McTell – o teriam nutrido, quando na verdade só existe um Bob Dylan pois Mr. Robert Zimmermann é um tremendo dum bibliófilo. Não apenas Dylan Thomas, de quem surrupio seu nom de plume, mas também Whitman, Ginsberg, Steinbeck, F.S. Fitzgerald etc., os escritos da Geração Beatnik, somem de cena por aqui.
Isto contribui para adicionar mistério à questão “de onde diabos saíram estas poesias tão fodásticas?”, quando elas evidentemente devem seu processo de gestação da leitura e do estudo dos grandes poetas do passado. É que Hollywood e seus cânones não suporta bem cenas em que o personagem está quieto num canto lendo livros em completa “inação” exterior, apesar da intensa atividade anímica propiciada pela “assimilação” dos versos.
A vida amorosa conturbada do jovem Dylan também é descrita através de uma triangulação bem articulada, em que ele aparece dividido, e até mesmo um tanto dilacerado, entre Joan Baez e Sylvie (na vida real, Suze Rotollo, a moça na capa do disco Freewheelin’). O filme acaba por frisar um caráter inapto para a fixidez afetiva, demasiado obcecado com processos criativos, gigs e tours para querer se render a um relacionamento que representasse um “settle down”.
Ademais, a tensão Dylan / Baez parece advir de uma outra gangorra, entre a colaboração e a competição. Há uma cena notável em que Bob salta fora da cama de Joan, pega o violão dela e rabisca a estrofe de “It’s Allright Ma” q termina com o verso “he not busy being born is busy dying”; ela o xinga de “jerk” e manda ele vazar; ele mostra-se incrédulo com a reação da moça, mas acaba por enfiar a viola no saco e se mandar. Há índices de que Dylan tinha certos comportamentos ostentatórios diante de Baez, como se quisesse esfregar na cara dela que era um cancionista muito mais prolífico e genial do que ela, e nas beiras de um turnê juntos o clima é de ambivalência, de amor e ódio entremesclados.
O filme capta com primor esta tensão agressiva-erótica, esta confrontação-colaborativa, quando eles cantam face-a-face, em um mesmo microfone, diante da multidão que assista ao Festival Folk de “Newport”, o supra sumo do anti-romantismo que é “It Ain’t Me”. No backstage, Sylvie é ferida por tanta intimidade exposta e corre de volta para casa. A expressão tão sensível de Ellen Fanning transmite bem a sensação de ser trancada para fora do palco, distante dos spotlights, mas tem razão algumas críticas que apontaram para o fato de que Suze Rotollo talvez merecesse ser melhor reconhecida como ativista dos direitos civis e artista de luz própria, e não apenas a despeitada namorada que sofre por ser deixada à sombra diante do intenso escrutínio público das relações e parcerias de Dylan e Baez.
Há duas sequências que gostei muito: a primeira é do começo das relações entre Dylan e Sylvie, quando eles vão ao cinema e ficam embasbacados com Betty Davis, e depois debatem no boteco sobre a dialética do velho e do novo; à época, o músico estava sendo confinado num certo nicho de música tradicionalista e seu álbum de estréia, inclusive, é quase inteiro composto por covers de standards.
Dylan demonstra desde cedo sua insatisfação diante desta reprodução dos cânones: os sabichões que decretam o que é a música folk autêntica acreditam que ela, a canção folk impecável, enfrenta o teste do tempo e ultrapassa viva a sucessão das gerações “como Shakespeare”. Dylan faz o diagnóstico de que “ninguém quer saber o que um moleque escreveu no seu quarto no mês passado”. Sylvie, nesta cena, é brilhante em argumentar que toda canção que tornou-se canônica um dia foi nova, e que alguém lá atrás teve que dar uma chance aos novatos que depois se tornariam clássicos.
Outra sequência que adorei é aquela da Crise dos Mísseis de Cuba, que descreve a tensão envolvendo a possível eclosão da guerra nuclear entre EUA e União Soviética, e o modo como o jovem Dylan reage a isto de maneira criativa e revoltada, compondo aquelas obras-primas amargas e magníficas como “Masters of War” e “A Hard Rain’s A Gonna Fall”. Gosto demais da expressão da atriz que interpreta Joan Baez quando ela testemunha Dylan, numa gig, mandando brasa nestas protest songs. A tensão entre eles também é política: quando ele ofende Baez chamando as canções dela de pinturas bonitinhas no consultório do dentista está expressando algo sobre seus parâmetros estéticos: estes abraçam cada vez mais, em 1965, a fúria e a feiúra.
Também avalio que parte da explanação do porquê da imensidão de Dylan está na coragem que ele teve de ser vaiado. Há aquela cena em que ele se recusa a tocar “Blowin’ In The Wind” diante da platéia, entrando num conflito com Baez, que quer entregar ao público o que este demanda. Dylan já está de saco cheio do seu hit, assim como Kurt Cobain não aguentava mais tocar “Smells Like Teen Spirit” em todo show do Nirvana. Em nenhuma cena esta coragem-de-ser-vaiado é mais explícita do que na atitude de levar uma Banda Elétrica Da Pesada para o tradicionalíssimo Newport, entrando em rota de colisão com Lomax, Seeger e cia.
Adotar postura divisiva, polêmica, fora da zona de conforto, fez dele este artista imenso que ele jamais seria se tivesse se limitado a ser um crowd pleaser. Apenas lamento a falta de reconhecimento, no filme, desta excelente agremiação de músicos, a The Band, que serviu como fiel assecla de Dylan nesta época e que não é sequer mencionada. Ainda que o filme revele bem o quanto Dylan se deixou influenciar pela eletrificação do blues promovida à época, sobretudo em Chicago, por bandas como a Paul Butterfield Blues Band, e ainda que demonstre bem a importância adquirida no entorno de Dylan por uma figura como o guitarrista Mike Bloomfield, a ausência da The Band é uma omissão criticável.
Tudo considerado, A Complete Unkown é um filmaço tanto para os aficcionados quanto para os não-ainda-iniciados na Dylanmania. A edição de som e a trilha sonora são esplendorosos e evitam as armadilhas da “dublagem”, demonstrando a coragem de Chamelet, Norton e Barbaro de se colocarem pra jogo enquanto intérpretes em seu sentido mais autêntico. O período entre 1961 e 1966 é de fato o mais crucial na “gênese da lenda” e a obra de Mangold nos transporta com primor para aqueles anos em que o cantor folk se transmuta no poeta beatnik eletrificado, gerando uma sequência de álbuns hoje clássicos: Freewheelin’, The Times They Are A-Changin’, Another Side (da fase acústica), Bringing It All Back Home, Highway 61 Revisited, Blonde on Blonde (de fase elétrica).
A ressonância de tais obras não cessou e o terremoto cultural gerado por elas não pára de ser analisada por grandes críticos culturais como Greil Marcus.
Sendo um Slice of Life, o filme não fornece tantas minúcias sobre a biografia de Dylan quanto os livros escritos por Howard Sounes e outros. Mas vale a pena ser visto, de preferência na telona do cinema com o som no talo, podendo suscitar importantes debates sobre o confronto entre o “puritanismo” cultural e os ímpetos transgressores e inovadores.
No Brasil dos 1960s também tivemos aquele confronto entre os MPBistas puristas, que marchavam contra a guitarra elétrica e louvavam Vandré, em confronto com os Tropicalistas e Mutantes que eletrizavam a cena acolhendo também influências do rock inglês e estadunidense. A Complete Unkown é um excelente “tratado fílmico” acerca desta polêmica no âmbito do folk e pinta-nos o retrato de Dylan como gênio irascível, inimigo da estagnação e do perigoso mito da pureza a ser conservada.
Eduardo Carli de Moraes
Cinépolis, Natal/RN
27 e 28 de Fevereiro de 2025
REFERÊNCIAS
1 – BORTOLOTTO, Mário. Post no Facebook. URL: https://www.facebook.com/mario.bortolotto/posts/pfbid0tmNuERKVfLb6io2sm5HTeDc7hjdqEQACMwGiqCYZdEAMVD9z7nBoraMmsZuhNdgVl
2 – MATTOS, Carlos Alberto. URL: https://carmattos.com/2025/02/28/o-alvorecer-da-esfinge-dylan
3 – FINOTTI, Ivan. Como Timothée Chalamet se transformou em Bob Dylan em filme agora no Oscar. In: Folha de S. Paulo, via André Vallias. URL: https://www.facebook.com/avallias/posts/pfbid02k3BtTqDwEgFXTK9Z8EqnfnozPYEjAqkm36RtD3DBiuDGjf4tSrDCHtNpoBhSmFQNl
VÍDEOS:
TRILHA:
Publicado em: 08/03/25
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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